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|Crítica| 'Manas' (2025) - Dir. Marianna Brennand

|Crítica| 'Manas' (2025) - Dir. Marianna Brennand

Crítica por Victor Russo.

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'Manas' / Paris Filmes

 

Título Original: Manas (Brasil)
Ano: 2025
Diretora: Marianna Brennand
Elenco: Jamilli Correa, Fátima Macedo, Rômulo Braga, Dira Paes e Emily Pantoja.
Duração: 101 min.
Nota: 3,0/5,0
 

Com um olhar externo, Marianna Brennand retrata os temas da prostituição infantil, do abuso sexual e da pedofilia com urgência, dor, sensibilidade e muito cuidado

É impossível assistir a Manas, filme brasileiro premiado em Veneza e também com o prêmio máximo da crítica na Mostra de São Paulo 2024, e não pensar imediatamente em Iracema - Uma Transa Amazônica, de 1975 e dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. São filmes irmãos, mas não daqueles que em tudo se assemelham, e, sim, obras que dão as mãos por sua temática central, enquanto não poderiam ser mais distantes em abordagem. A comparação aqui é pertinente, já que cada um representa um olhar de seu tempo para a questão da prostituição infantil em zonas de pouco amparo no Norte do Brasil, em momentos históricos específicos. Ambos se passam no Pará, o de 1975 em Belém, o de 2024 na Ilha de Marajó, o primeiro em um período de expansão comercial, da estrada transamazônica cortando o país e fazendo com que agentes externos ao local se apresentassem por lá, enquanto o segundo se dedica mais ao esquecimento quase completo do estado a um local, permitindo não só com que a prostituição infantil vire um comércio, mas, principalmente, o domínio de uma estrutura patriarcal de abuso que começa dentro de casa, com as mulheres (esposas e filhas) se tornando propriedade do varão da família (nada de novo na história brasileira, ainda que uma realidade dura para os dias atuais).

Entretanto, não é só a realidade histórica que distancia Manas de Iracema, é principalmente o tempo de cada um na história do cinema brasileiro, além, claro, de uma demarcação entre olhar masculino e feminino e proximidade e distanciamento da percepção de quem conduz a obra. Comecemos então com o longa de Bodanzky e Senna, protagonizado por Paulo César Peréio vivendo Sebastião e tendo o seu caminho se cruzando com Iracema (Edna de Cássia) por diversas vezes. O tratamento do tema da prostituição está presente, mas não tanto em crítica restrita e objetiva, sendo muito mais uma consequência desse retrato de Brasil, não só dos espaços, como também da liberdade audiovisual que dava um ar um tanto documental para a obra, com muitas daquelas garotas e personagens vivendo eles mesmos, enquanto Peréio encarnava esse personagem escrachado, tipicamente brasileiro, que xinga, abusa, se diverte e interage da forma mais natural possível. Se não é um filme acrítico, o longa claramente goza de um período do cinema em que nem tudo precisava ser demarcação rígida de certo e errado, tomando a fluidez das ações e do caráter de cada parte presente para construir uma obra muito mais próxima da realidade, do brasileiro verdadeiro, como acontece de fato, permitindo à dramatização o acaso, o despudorado, o imprudente.

Manas já chega em um outro momento do cinema, não só do brasileiro, como do mundial. Um período de redes sociais em que defender uma causa sem espaço para contradições ou incertezas é o que define os filmes dispostos a abordar temas sociais com denúncias mais contundentes. Ou seja, vale mais fazer um filme “certinho” para o seu espectro político aplaudir e dizer “crítica social foda”, mesmo quando muitas dessas obras são desprovidas de uma verdadeira vontade de fazer cinema e muitas possíveis problemáticas do olhar deixam de ser questionadas. Apesar de trabalhar com pessoas reais da região, inclusive com a grande atuação da estreante Jamilli Correa, que vive a protagonista de 13 anos Marcielle, Marianna Brennand tem um pulso firme que não permite o real, em sua forma de acaso, adentrar a obra. Toma tudo pelo cuidado, pelo pulso firme por fazer o certo, desde o estudo e envolvimento com a região previamente às filmagens, até, sobretudo, ao desenvolvimento do que está em tela. Há uma preocupação gigante e muito bem executada pela diretora em falar sobre essas violências, criando angústia no espectador, mas sem necessariamente mostrá-las. A sugestão é suficiente na maioria das vezes para sentirmos a dor daquela prisão sem grades, da exploração de mulheres desamparadas. 

O cuidado demonstra a habilidade de Brennand em dramatizar, mas vem com o risco de tornar a obra calculada demais, dramatizada ao extremo, a ponto de ter toda uma passagem com Aretha (Dira Paes) apenas para confortar esse espectador que tanto sofreu, uma sequência final que tenta demonstrar uma presença do estado, pela figura de outra mulher, na tentativa de romper aquele ciclo de violência. Soa um tanto forçado, até programado, impossibilitando a obra de se desprender dessas amarras da ficção na hora de retratar uma situação específica e problemática do nosso país, mas quase sempre escondida dos olhos públicos. Brennand traz luz ao tema com habilidade, mas ainda assim revelando um olhar estrangeiro que tanto tenta esconder, algo que não existia na obra de Bodanzky e Senna, que se revelavam desde o início, a partir da figura de Peréio, como uma obra daqueles que chegam de fora e exploram a região. Há sensibilidade de sobra da diretora ao representar uma questão centralmente feminina contra uma dominância masculina, ainda que toda a dedicação da diretora em se aproximar das garotas da região ainda denuncie essa visão de fora, quase como se houvesse uma superioridade salvadora frente àquela realidade “exótica”, muito marcada pela necessidade do filme em reforçar a pobreza com um caráter de pena, mostrando, por exemplo, como a protagonista lava suas calcinhas no rio. 

Cuidado e estudo demais são bem-vindos a partir do olhar de uma diretora com talento, mas refletem também quem realmente tem condições de fazer cinema no Brasil, como todas as diversas realidades regionais mais duras são quase sempre retratadas por uma elite intelectual das grandes metrópoles, nunca tratando os afetados por essas violências como iguais e ainda tentando (fragilmente) esconder esse olhar estrangeiro. Nesse sentido, se não é possível mais (sem ser cancelado nas redes) adotar a liberdade explosiva e real do olhar escrachado (e um tanto masculino, é verdade) de Bodanzky e Senna, talvez o melhor caminho seja o reconhecimento do privilégio e da culpa, como Martin Scorsese fez em Assassinos da Lua das Flores. Tentar fazer parte de uma realidade a qual não pertence pode funcionar para prêmios internacionais, com a elite da crítica ou no senso comum das redes sociais, ainda mais quando é feito com tanto carinho e sensibilidade, como é o caso de Brennand, mas, no fundo, sempre será perceptível esse olhar estrangeiro de inferiorização do outro, sendo estes retratados como figuras que precisam ser salvas. É aqui que Manas escorrega e escorrega muito.

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